9 de novembro de 2007

O INTINERÁRIO ESPIRUTAL DE LUTERO

Autor: R.P. Gustavo Camargo

Sacerdote da F.S.S.P.X  (Córdoba, Argentina)

Revista Iesus Christus N100 Jul.Ago 2005

(Republicado em http://www.conviccionradio.cl/Formacion%20Catolica/El_Itinerario_Espiritual_de_Lutero.html)

Tradução do Espanhol por Jorge Luis

 

lutero[1] A “reforma” de Martinho Lutero é muitas vezes apresentada pela história oficial de modo deformado e tendencioso, como uma legítima reação à decadência da Igreja. Se fala do famoso tema das indulgências, entre outros, de uma forma bastante inexata, e isto para justificar sua atitude de grande ultraje de 31 de outubro de 1571(?), quando prega na porta da igreja de Wittemberg suas tristemente famosas 95 teses.

Todos os erros de Lutero são produto, se é que pode dizer-se assim, de uma ‘bola de neve’ e vêm num crescente a partir de alguns erros filosóficos e doutrinais mal resolvidos e que culminam em uma grave crise moral.

Por isso é necessário percorrer brevemente esse itinerário descendente de Martinho Lutero, para assinalar certas conseqüências atuais de sua doutrina e que é preciso conhecer, precisamente porque a crise que vivemos hoje em dia na Igreja tem um grande aspecto de “protestantização” de toda sua liturgia e doutrina.

Lutero nasce em 1483, em Eisleben (Suíça) no seio de uma família humilde. Seus pais, Urs Luder e Margeritte Zigler, o educaram em um ambiente rígido, mais precisamente severo, traço este que se refletirá no caráter de Lutero.

Graças a uma pessoa amiga pôde estudar filosofia e direito na Universidade de Erfurt, mas a filosofia na qual abreva é aquela deformada e deformante de Guilherme de Occam.

Ingressa no convento agostiniano de Wittemberg, caracterizado por sua dura disciplina e austeridade, mas também pela falta de solidez doutrinal.

Tem como diretor espiritual Frei João de Staupitz, que é um homem piedoso mas de caráter débil e imprudente, e sobretudo incapaz de dirigir a alma atormentada de Lutero.

A teologia nos ensina que a fé é um ato da inteligência. Por isso mesmo, enquanto virtude teologal, reside na potência mais elevada da alma humana, faculdade que foi elevada mas não deformada pelo pecado.

O fundamento do ato de fé está estabelecido na Revelação. Seu objeto é o que Deus tem comunicado aos homens. É um conhecimento de Deus, a participação do conhecimento com que Deus mesmo se conhece. Deus tem revelado este conhecimento e o tem dado ao homem, que participa dele. Não seria possível uma revelação de Deus aos homens se ela não fosse dada em uma linguagem acessível ao gênero humano. A linguagem é um meio coextensivo à inteligência, e neste caso, a humana.

Lutero é um fiel discípulo de Occam e como tal fundará sua doutrina com um grande desprezo da razão: a razão “em tudo que se refere às obras e à palavra de Deus, é cega, surda, estúpida, ímpia e sacrílega”.

Lutero dizia de si mesmo: “sou do partido de Occam”; “Occam, meu mestre, foi o maior dos dialéticos”; “Guilherme de Occam, dos doutores escolásticos, é sem dúvida o primeiro”.

William Ockham, franciscano inglês, foi uma das figuras que por desgraça teve um papel importantíssimo na história do pensamento humano. Ele mesmo declarou querer iniciar com sua obra a via moderna da filosofia. Sua doutrina é profundamente confusa, muitas vezes superficial e contraditória, e alguns erros de fundo e certas conclusões de seus estudos foram particularmente nefastos.

O fato é que o nominalismo – também chamado “doutrina occamiana” – tem marcado a história da filosofia, inclusive até nos nossos dias. A partir da primeira metade do século XIV se difunde extraordinariamente; predomina na maioria das universidades e marca a direção principal tomada pela filosofia e a teologia escolástica até o século XVI.

Para Occam e seus discípulos o conhecimento intelectual humano tem como objeto próprio as coisas singulares, não as essências universais. Aristóteles, quando fala de abstração, assinala o obrar da inteligência que descobre nas coisas sua própria essência a partir da experiência sensorial. Em Occam a abstração é uma simples separação de certos dados da experiência a fim de considerá-los com precedência das circunstâncias que os acompanham. Assim, por exemplo, sem considerar que a realidade que é objeto de atenção tenha agora existência ou não a tenha, qualquer que seja o método de observação, o conhecido é sempre um fato singular, nunca algo de seu ‘eu’ universal.

Como o mesmo afirma, “nenhuma realidade fora da alma, seja por si ou por algo que lhe agregue, real ou de razão, de qualquer maneira que se a considere, ou que se a entenda, é universal: pois tão impossível é que uma realidade fora da alma seja de qualquer modo universal (...) quanto o é que um homem, sob qualquer consideração ou de qualquer modo, seja um asno.”

Levado por estes erros no campo da filosofia, Lutero chegará a uma definição de fé que afasta notavelmente do que a Igreja ensina. Já não é um ato de assentimento ao que é revelado por Deus mas um ato de natureza afetiva, pelo qual o homem sente em si a intervenção salvadora de Deus.

Com estes postulados o problema do pecado não encontra solução, não existe resgate possível, não existe satisfação da ofensa feita a Deus; em última estância, não existe verdadeiramente uma obra redentora realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que existe para Lutero é a simples não-imputação do pecado. Apelando à figura do ‘manto de Noé’, afirma que Deus cobre nossas misérias e não as têm em conta. A fé consiste portanto nessa segurança interior adquirida pelo homem de que Deus, apesar do pecado, lhe justifica e lhe salva.

Se essa é a teoria, consideremos a vida prática, concretamente em Lutero mesmo. Sua vida moral foi um calvário de tormentos pelas tentações da concuspiscência e pelas armadilhas demoníacas.

Para Lutero não existe distinção entre tentação e pecado. O voluntarismo reinante o levava a lutar contra seus ‘pecados’ recorrendo à penitência corporal e a seus próprios esforços, mas sem nenhuma prudência e sem o conhecimento da graça. Com cada nova tentação lhe parecia já encontrar-se no inferno. Boa parte da confusão em que se encontra sua alma se explica através da influência que lhe exerceram os escritos de Mestre Eckart.

Diante destas coisas, Lutero chega a uma triste conclusão: Eu não posso santificar-me e é impossível vencer as tentações. Na verdade, a santidade não é possível. Eu não sou santo porque nada pode ser. A graça nem transforma nem eleva nossa “natureza, que segue estando irremediavelmente corrompida, uma corrupção que mesmo persistindo, desaparece e se oculta sob o “manto de Noé”.

Assim se vê como aquela ‘bola de neve’, à qual aludimos, consegue por um intento – lamentavelmente muito comum – de justificar sua própria atitude: “se não vive como pensas, terminará pensando como vives”. A negação da autoridade da Igreja, do culto dos Santos, a deformação dos sacramentos se submetem às conseqüências deste falso princípio e caem em uma ladeira escorregadia: se conservam – não todos, obviamente – mas adquirem um significado completamente diferente do que têm no catolicismo.

O batismo não suporá a infusão da primeira graça na alma do recém-nascido porque todo homem é irremissivelmente pecador desde o primeiro ao último instante de sua vida; em todo caso, ficará reduzido ao caráter de sinal externo da não-imputação do pecado original (há lugar em sua doutrina para o pecado original?) e incorporação à comunidade dos crentes. A confirmação fica reduzida a um rito de natureza estritamente eclesiástica mas nunca de instituição divina. Mas com que fim, se o homem não pode lutar mais que em vão contra a tripla concupiscência? Com o mesmo argumento a penitência cai por terra.

Algo semelhante há de se dizer sobre a extrema-unção, que os protestantes mais conseqüentes eliminaram por completo de seus ritos. O matrimônio é uma mera convenção humana e não existe rastro algum nas Escrituras de que tenha sido estabelecido como sacramento por Nosso Senhor. De passo recordemos que Lutero, junto a Melanchton e outros conspícuos ‘pops’ do protestantismo de então, firmaram um ‘dictamen’ autorizando ao Landgrave de Hesse, que não podia reprimir sua paixão por uma donzela, para que contraísse segundas núpcias: não sucessivas, mas simultaneamente à que então era sua legítima esposa. A Missa, objeto de particular abominação por parte de Lutero, longe de ser um sacrifício é uma cena, uma refeição fraternal, uma profissão comunitária da fé da comunidade e na qual Cristo se faz espiritualmente presente. Destruída a Missa, nada fica do sacramento da ordem: os ministros religiosos são meros representantes da assembléia que supervisionam a boa ordem dos assuntos religiosos e repartem o pão da palavra.

A perspectiva de Lutero conduz a um voluntarismo mal entendido e sem frutos: mais ainda, muito perigoso, pois favorece o determinismo e o fatalismo.

Em troca, a verdadeira doutrina de Nosso Senhor nos quer instalar na humildade e na confiança na ação secreta da graça de Deus em nossas almas. O que para o homem é impossível – impossível por ele apenas, com seus próprios meios e suas próprias forças – não é impossível para a onipotência e a misericórdia de Deus.

Santo Agostinho, o doutor da graça, e depois dele Santo Tomás, explicam como a ação da graça de Deus é certamente um grande mistério: como Deus move o homem sem detrimento de sua liberdade. Mas o fato de não poder abarcar e compreender o insondável mistério da graça não nos autoriza para reduzi-lo nem para deformá-lo.

O Bispo de Hipona e o Doutor Comum ensinam como a graça, longe de suprir a natureza, a eleva e nos faz partícipes da própria vida de Deus. Na Cruz, Nosso Senhor satisfaz realmente por nossos pecados e de lá fluem como de um rio inesgotável toda a torrente de graças que se derramam na Igreja e nas almas dos fiéis através da Santa Missa e dos sacramentos.

Esse é o centro da Revelação e o coração de nossa vida cristã, e isso é o que melhor demonstra que há um abismo – e um abismo imenso – entre o protestantismo e o catolicismo.

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